segunda-feira, 1 de março de 2010

DIFÍCIL ARTE DE SER MULHER


Hours concours em   Cannes, um dos filmes de maior sucesso no badalado festival francês  foi  “Ágora”, direção de Alejandro Amenabar. A estrela é a inglesa  Rachel Weiz,  premiada com o Oscar 2006 de melhor atriz coadjuvante em  “O jardineiro fiel”,  dirigido por Fernando Meirelles.

Em  “Ágora” ela interpreta  Hipácia, única mulher da Antiguidade a se  destacar como cientista. Astrônoma,  física, matemática e filósofa,  Hipácia nasceu em 370, em Alexandria. Foi a  última grande cientista de  renome a trabalhar na lendária biblioteca daquela  cidade egípcia. Na  Academia de Atenas ocupou, aos 30 anos, a cadeira de  Plotino. Escreveu  tratados sobre Euclides e Ptolomeu, desenvolveu um mapa de  corpos  celestes e teria inventado novos modelos de astrolábio, planisfério e   hidrômetro.

Neoplatônica, Hipácia defendia a liberdade de   religião e de pensamento. Acreditava que o Universo era regido por  leis  matemáticas. Tais ideias suscitaram a ira de fundamentalistas  cristãos que, em  plena decadência do Império Romano, lutavam por  conquistar a hegemonia  cultural.

Em 415, instigados por  Cirilo, bispo de Alexandria,  fanáticos arrastaram Hipácia a uma  igreja, esfolaram-na com cacos de cerâmica  e conchas e, após  assassiná-la, atiraram o corpo a uma fogueira. Sua morte  selou, por  mil anos, a estagnação da matemática ocidental. Cirilo foi  canonizado  por Roma.

O filme de Amenabar é pertinente nesse  momento  em que o fanatismo religioso se revigora mundo afora. Contudo, toca   também outro tema mais profundo: a opressão contra a mulher. Hoje, ela  se  manifesta por recursos tão sofisticados que chegam a convencer as  próprias  mulheres de que esse é o caminho certo da libertação  feminina.

Na  sociedade capitalista, onde o lucro impera  acima de todos os valores, o padrão  machista de cultura associa  erotismo e mercadoria. A isca é a imagem  estereotipada da mulher. Sua  autoestima é deslocada para o sentir-se desejada;  seu corpo é  violentamente modelado segundo padrões consumistas de beleza; seus   atributos físicos se tornam onipresentes.

Onde há oferta  de  produtos – TV, internet, outdoor, revista, jornal, folheto, cartaz  afixado em  veículos, e o merchandising embutido em telenovelas – o que  se vê é uma  profusão de seios, nádegas, lábios, coxas etc. É o açougue  virtual. Hipácia é  castrada em sua inteligência, em seus talentos e  valores subjetivos, e agora  dilacerada pelas conveniências do mercado.  É sutilmente esfolada na ânsia de  atingir a perfeição.

Segundo  a ironia da Ciranda da bailarina,  de Edu Lobo e Chico Buarque,  “Procurando bem / todo mundo tem pereba / marca  de bexiga ou vacina /  e tem piriri, tem lombriga, tem ameba / só a bailarina  que não tem”.  

Se tiver, será execrada pelos padrões machistas por ser  gorda,  velha, sem atributos físicos que a tornem desejável.

Se   abre a boca, deve falar de emoções, nunca de valores; de fantasias, e  não de  realidade; da vida privada e não da pública (política). E  aceitar ser  lisonjeiramente  reduzida à irracionalidade  analógica: “gata”, “vaca”,  “avião”, “melancia” etc.

Para  evitar ser execrada, agora Hipácia  deve controlar o peso à custa de  enormes sacrifícios (quem dera destinasse aos  famintos o que deixa de  ingerir...), mudar o vestuário o mais frequentemente  possível,  submeter-se à cirurgia plástica por mera questão de vaidade (e  pensar  que este ramo da medicina foi criado para corrigir anomalias físicas e   não para dedicar-se a caprichos estéticos).

Toda mulher  sabe:  melhor que ser atraente, é ser amada. Mas o amor é um valor  anticapitalista.  Supõe solidariedade e não competitividade; partilha e  não acúmulo; doação e  não possessão. E o machismo impregnado nessa  cultura voltada ao consumismo  teme a alteridade feminina. Melhor  fomentar a mulher-objeto (de consumo).

Na guerra dos  sexos, historicamente é o homem quem dita o lugar  da mulher. Ele tem a  posse dos bens (patrimônio); a ela cabe o cuidado da casa   (matrimônio). E, é claro, ela é incluída entre os bens... Vide o  tradicional  costume de, no casamento, incluir o sobrenome do marido ao  nome da  mulher.

No Brasil colonial, dizia-se que à mulher  do senhor de  escravos era permitido sair de casa apenas três vezes:  para ser batizada,  casada e enterrada... Ainda hoje, a Hipácia  interessada em matemática e  filosofia é, no mínimo, uma ameaça aos  homens que não querem compartir, e sim  dominar. Eles são repletos de  vontades e parcos de inteligência, ainda que  cultos.

Se  o atrativo é o que se vê, por que o espanto ao saber  que a média atual  de durabilidade conjugal no Brasil é de sete anos? Como  exigir que  homens se interessem por mulheres que carecem de atributos físicos  ou  quando estes são vencidos pela idade?

Pena que ainda não   inventaram botox para a alma. E nem cirurgia plástica para a  subjetividade.

por Frei Betto*

* [Autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros],
Escritor e assessor de movimentos sociais.

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