segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Mulheres guerreiras na Constituinte: Entrevista com Lídice da Mata




por Paulo Nunes.

A deputada Lídice da Mata (PSB -BA), deputada federal constituinte entre 1987 e 1988, era uma das 26 mulheres que integraram a Assembléia há 20 anos com 533 homens. A chamada “bancada do batom” foi alvo de preconceitos num mundo político até então quase exclusivamente masculino. Para elas, não havia sequer banheiro feminino.
Apesar da concentração da mídia em detalhes como mostrar a constituinte mais bonita, ou a mais elegante, preocupando-se mais com os sapatos do que com as idéias e projetos das deputadas, elas conquistaram seu espaço e tornaram vitoriosa a participação política feminina no Brasil naquele momento. Logo no início da Constituição, o capítulo sobre Direitos e Garantias Fundamentais proclama no artigo 5º que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”.
Graças à união, todas participaram ativamente e têm contribuição essencial na garantia dos direitos das mulheres. “Elegemos 26 mulheres e fizemos uma bancada feminina que se caracterizou pela unidade de ação naquele momento. Independente de legenda partidária, nós constituímos um fórum de mulheres”, afirma Lidice.
Economista formada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Lídice iniciou a carreira política como líder estudantil, e teve participação intensa na luta pela anistia e contra a ditadura. Em 1983, aos 27 anos, foi eleita vereadora em Salvador e depois deputada federal, na legislatura 1987/1990, na qual os dois primeiros anos os parlamentares eram também constituintes.
Ela também foi a primeira mulher - e única até agora - à frente da prefeitura na capital baiana, e administrou a cidade de forma inovadora, de 1993 a 1996. Nesta entrevista para o Especial Constituição 88, a deputada comenta as principais conquistas das mulheres e a forte atuação da “bancada do batom” na Assembléia Nacional Constituinte.
[Especial Constituição 88] Como foi a participação feminina na Assembléia Constituinte? Vocês enfrentaram preconceitos num parlamento tão masculino?
[Lídice da Mata] Foi um grande momento da luta das mulheres que provou, inclusive, que era necessário aumentar numericamente a nossa participação no poder político para que resultasse em conquistas objetivas, em mudança na lei e conquista de direitos na sociedade.
Com a Constituinte, primeiro nós nos organizamos para eleger um número maior de mulheres. Até então, menos que cinco mulheres havia passado pelo parlamento, duas na Câmara, duas no Senado. No máximo chegava a três mulheres na Câmara dos Deputados.
Primeiro, a participação das mulheres foi grande na resistência à ditadura militar. Quando saímos da ditadura, tínhamos acumulado experiência e organização suficientes para, com a proposta de Constituinte pra valer, organizada, articulada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, vir a conquistar espaços reais nessa nova bancada.
Pela primeira vez, elegemos mais de duas dúzias de mulheres para o Congresso Nacional. Elegemos 26 mulheres e fizemos uma bancada feminina que se caracterizou pela unidade de ação naquele momento. Independente de legenda partidária, nós constituímos um fórum de mulheres, além de articular com a consultoria e o apoio do Conselho dos Direitos da Mulher e do CEFEMEA, e pudemos avançar nossas lutas.
[Especial Constituição 88] Vocês enfrentaram preconceito nesse processo de elaboração da Constituição?
[Lídice da Mata] Enfrentamos preconceitos de todos os tipos. Nós chegamos num Congresso que não tinha sequer banheiro feminino. O plenário só tinha banheiro de homem, um banheiro único porque a presença da mulher era tão minúscula que não se fazia necessário esse tipo de equipamento.
A primeira questão foi a luta pelos banheiros, por incrível que possa parecer. Terminou que se estabeleceu um acordo pelo qual as mulheres ficariam no anexo 4 para garantir que teriam banheiro privativo nos seus gabinetes. Mas na luta para que tivéssemos banheiro dentro do plenário, foi feita uma reforma na Câmara para garantir o banheiro feminino ali. Foi uma luta um tanto cultural, surda, para que a compreensão da presença das mulheres não fosse apenas de um enfeite.
A imprensa nos tratava como musas da Constituinte, a mais jovem, a mulher que tinha o adorno mais bonito, a que tirava o sapato. Era o foco nos sapatos das mulheres, na elegância, na idade, na mais bonita, enfim, foi com muita unidade e articulação política que nós conseguimos nos impor pelas idéias e pela participação.
As mulheres tiveram o maior índice de participação no debate constituinte. Todas as pesquisas indicam isso. Não só a presença, mas uma participação qualitativa, interferindo em todas as áreas de atuação. Nas comissões, tínhamos um número de emendas grande, e um nível de intervenção nos debates também de uma forma muito intensa.
Com nossa participação, havia uma unidade em debates onde podíamos convocar outras mulheres na comissão onde tinha uma só, para todas virem apoiar aquela posição, aquela situação que a companheira enfrentava. E foi uma experiência singularíssima porque tivemos um grande número de mulheres nesse processo constituinte que mudaram de partido, saindo de partidos mais conservadores para os mais progressistas. Inclusive, algumas delas rompendo com seu próprio marido, que tinha uma posição política mais quadrada.
[Especial Constituição 88] Quais os principais avanços em relação aos direitos das mulheres que esta Constituição trouxe?
[Lídice da Mata] A primeira delas a afirmação de que as mulheres têm direitos iguais aos dos homens. Na sociedade não pode ter nenhum tipo de discriminação e aí vamos para o direito trabalhista, com a proibição de salários menores para as mulheres; vamos ao direito à terra para a mulher trabalhadora rural; o conceito de que o planejamento familiar não pode ser impositivo, mas o resultado da vontade do casal.
Tem uma série de artigos, seja na questão do trabalho, seja na questão da família, enfim, em diversas áreas estão expressos direitos importantes que as mulheres passaram a ter, consolidando a idéia essencial garantida no início da Constituição, que é a igualdade de direitos entre homens e mulheres.
[Especial Constituição 88] Ainda hoje, apesar desses direitos vigorarem na Constituição, alguns ainda estão longe da prática e não se efetivaram. A questão salarial é uma delas porque ainda hoje muitas mulheres têm remuneração menor que a do homem para o mesmo tipo de trabalho. O que falta para que esses direitos se efetivem?
[Lídice da Mata] Entre a lei e a sociedade há uma certa distância que o processo econômico e cultural vai assegurando. Um exemplo é que nós acabamos de votar a lei Maria da Penha. Ainda existe um caminho longo para que ela possa se transformar em realidade.
O que podemos dizer é que a partir da Constituição foram usadas leis importantes no Brasil, consolidando esses direitos e seus conceitos. Depois da Constituinte, tivemos a mudança da lei penal, a mudança do Código Civil, a criação do Estatuto do Idoso, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Todos estes descriminando direitos de proteção específica, atendendo as mulheres, sejam meninas ou a terceira idade.
Na economia, esses diretos vão se consolidando a partir do momento em que vamos nos qualificando mais também. O fato de existir a lei faz com que possamos lutar para que estes direitos se tornem realidade. Sem a lei, nem isto podemos fazer.
[Especial Constituição 88] Em quase dois anos de trabalho para elaboração da Constituição, o que ficou guardado na sua memória como o momento mais marcante?
[Lídice da Mata] Certamente, o discurso de Ulysses Guimarães consolidando a Constituição como a “Constituição Cidadã”. O momento Constituinte foi maravilhoso. Para todo o parlamento foi o seu grande momento porque a Carta Magna é a única lei que nós promulgamos e não dependemos de sanção do presidente da República.
Tivemos momentos memoráveis, como quando conseguimos aprovar a licença paternidade num discurso emocional do ex-ministro, hoje deputado, Alceni Guerra (DEM-PR). Tivemos um momento muito especial onde se discutiu a questão da propriedade privada para inseri-la na Constituição. Foi um momento de debate político- ideológico que aconteceu naquela Casa, momento em que discutimos a questão agrária no Brasil.
Outro grande tema que passou por um processo de debate muito intenso, finalmente com um acordo conduzido pelo líder senador Mário Covas (então PMDB-SP), mas que encerrou um processo de luta político-ideológica muito importante na Constituinte. Foram muitos momentos singulares.Mas o momento final, onde Ulysses sistematiza a idéia da “Constituição Cidadã”, é um momento que marca todos nós que participamos daquele percurso.


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